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O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente

Olá, leitor!

O Auto da Barca do Inferno (também chamado de Auto da Moralidade) é uma peça de Gil Vicente, executada pela primeira vez em 1531. Faz parte da “Trilogia das Barcas”, seguida pelo Auto da Barca do Purgatório e pelo Auto da Barca da Glória.

Assim como a Divina Comédia de Dante Alighieri, retrata o olhar do medievo sobre a vida após a morte. A peça, então, traz a visão da corte portuguesa sobre o julgamento das almas. E mostra vários personagens sendo direcionados por um anjo e pelo Diabo para suas respetivas barcas.

Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso  um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.
O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.

Diabo — À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré! — Ora venha o carro a ré!

Companheiro — Feito, feito!
Bem está!
Vai tu muitieramá,
e atesa aquele palanco
e despeja aquele banco,
para a gente que virá.
À barca, à barca, hu-u!
Asinha, que se quer ir!
Oh, que tempo de partir,
louvores a Belzebu!
— Ora, sus! que fazes tu?
Despeja todo esse leito!

Companheiro — Em boa hora! Feito, feito!

Diabo — Abaixa aramá esse cu!
Faze aquela poja lesta e alija aquela driça.

Companheiro — Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!

Diabo — Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa.
Verga alta! Âncora a pique!
— Ó poderoso dom Anrique, cá vindes vós?… Que cousa é esta?…

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

Fildalgo — Esta barca onde vai ora, que assim está apercebida?

Diabo — Vai para a ilha perdida, e há-de partir logo ess’ora.

Fildalgo — Para lá vai a senhora?

Diabo — Senhor, a vosso serviço.

Fildalgo — Parece-me isso cortiço…

Diabo — Porque a vedes lá de fora.

Fildalgo — Porém, a que terra passais?

Diabo — Para o inferno, senhor.

Resumo da Obra

O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente

Fonte: Reprodução

A narrativa tem início em um porto imaginário (que somos levados a crer que seja no Aqueronte, o rio infernal da mitologia grega). Lá repousam duas barcas: A do Inferno, guiada pelo Diabo e seu Companheiro; e a da Glória, regida pelo Anjo.

É bom destacar que o condutor da barca infernal é mostrado como inteligente e astuto. Irônico e bem-humorado. Mas nunca como um agente do mal. Aqui, é relegado ao papel de juiz e de detetive, devassando completamente os segredos que as almas julgadas procuram esconder.

O humor é uma constante, seja nas situações simplórias do parvo Joane, seja na queda dos que se colocam em condições augustas para serem desbancados e ridicularizados pelo Diabo, o qual se diverte ao desmentir cada um dos que o inquirem em busca de perdão.

A seguir, discorre um desfile de almas a serem julgadas. Elas chegam ao porto e vislumbram as duas barcas. Imediatamente, dirigem-se à Barca do Inferno, por esta estar mais enfeitada que a outra. Mas notando o lugar para onde seriam levados, resolvem ir até a Barca da Glória. Após o julgamento, por fim, a tripulação é divida em cada embarcação.

O primeiro a chegar é o fidalgo Dom Anrique. Dom Anrique é a figura da nobreza, apresentando com roupas extravagantes e, até mesmo, um pajem a tiracolo. Senta-se em uma cadeira de espaldar, deixando claro, a todos os presentes, sua classe social. O diabo o elege como seu acompanhante, por conta de Dom Anrique levar uma vida cheia de pecados, muito afeito à luxúria e à tirania, que não cansava de demonstrar mesmo agora, depois da morte. A falta de modéstia do fidalgo o leva a evocar as compras de indulgências ou as orações pagas com dinheiros, que de nada valem. Nesta peça, Dom Anrique representa uma crítica pesada ao orgulho excessivo e à tirania praticadas pela nobreza. Seus símbolos são a cadeira de costas altas e seu próprio criado, mostrando o abuso do poder que lhe foi concedido.

Em seguida, apresenta-se um onzeneiro (termo usado na época para designar agiotas). Quando chega à barca enfeitada do Diabo, vê-se desprovido de toda sua fortuna, visto que esta fora deixada na terra. O onzeneiro, então, tenta convencer o diabo a deixá-lo retornar ao mundo dos vivos, alegando que buscaria seu dinheiro para levá-lo consigo na viagem. Diante de tal demonstração de apego ao mundano, o Diabo nega o pedido do usurário, condenando-o a uma viagem mais leve aos campos infernais. Carrega um bolsão vazio, como suas promessas. O bolsão simboliza, para o autor, o apego às coisas da terra como o dinheiro, que levam à ambição, à ganância e à usura, considerada crime e pecado na época.

Outro dos querentes a apresentar-se ao batel é um sapateiro chamado Joanantão, de renome e de aparência nobre. Chega envergando seu avental, bem como as formas e demais instrumentos de trabalho. Todos esses elementos são ferramentas tanto usadas para desempenhar seu trabalho, quanto para explorar seus clientes, simbolizando a inescrupulosa burguesia que ascendeu do comércio. Como estava acostumado a enganar os homens, Joanantão tenta, sem sucesso, enganar o próprio Diabo. Claramente este não consegue e é condenado por suas ações em vida e pós-vida.

Chega ao porto Joane, um homem com o intelecto prejudicado, incapaz de discernir o certo do errado. O Parvo, como era chamado na época, vem sem portar coisa alguma, porém, em sua simplicidade e, sem malícia, logra êxito em enganar e, até mesmo, insultar o próprio Diabo, sem qualquer consequência.

Joane é uma alma sem maldade, mostrando valores legítimos e sinceros. Quando inquirido sobre sua identidade pelo Anjo, ao passar por sua barca, Joane diz ser ninguém. Por meio dessa resposta humilde, somada a seu coração sincero e verdadeiro, tem seu lugar garantido no Paraíso.O Parvo também é usado como recurso do autor para ironizar os demais personagens em sua pretensão de enganarem o Diabo, na tentativa de passarem-se por inocentes. O Parvo é o único personagem que não traz consigo qualquer símbolo, pois não possui pecados conscientes. Ele é a representação da ingenuidade em seu estado mais puro.

Após, vem Frei Babriel, juntamente com sua, assim chamada, dama Florença. Além da moça, leva consigo uma espada, um escudo, um elmo e seu hábito. Estes signos representam a vida afeita aos prazeres mundano que o clero leva, bem como a perda de seus costumes, por meio das ações de seus membros. Gil Vicente o hábito de retratar os membros do clero como alegres, extrovertidos, afeitos ao canto e à dança, porém dotados de caráter terrível. Apesar de estar acompanhado de sua amante, crê, piamente que, tendo servido a fé, estaria perdoado de quaisquer pecados. Tenta ensinar a arte da espada ao Diabo (este finge não saber nada do manejo da arma). Isso é a ruína do frade, pois homens do clero não deveriam lidar com tais instrumentos, o que o condena à danação. Aqui notamos uma crítica mordaz aos maus costumes do clero, pois, segundo o autor, este deveria dar exemplos de paz, de verdade e de fé.

Vem um Frade com uma Moça pela mão, e um broquel e uma espada na outra, e um casco debaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

Frade — Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã;
ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã:
tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!

Diabo — Que é isso, padre?! Que vai lá?

Frade — Deo gratias! Som cortesão.

Diabo — Sabês também o tordião?

Frade — Porque não? Como ora sei!

Diabo — Pois entrai! Eu tangerei e faremos um serão.
Essa dama é ela vossa?

Frade — Por minha la tenho eu, e sempre a tive de meu,

Diabo — Fizestes bem, que é formosa!
E não vos punham lá grosa no vosso convento santo?

Frade — E eles fazem outro tanto!

Diabo — Que cousa tão preciosa…
Entrai, padre reverendo!

Frade — Para onde levais gente?

Diabo — Para aquele fogo ardente que nom temestes vivendo.

Frade — Juro a Deus que nom t’entendo!
E este hábito não me vai?

Diabo — Gentil padre mundanal, a Belzebu vos encomendo!

Frade — Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesus Cristo, que eu nom posso entender isto!
Eu hei de ser condenado?!…
Um padre tão namorado e tanto dado à virtude?
Assim Deus me dê saúde, que eu estou maravilhado!

Diabo — Não curês de mais detença.
Embarcai e partiremos: tomareis um par de ramos.

Frade — Nom ficou isso n’avença.

Diabo — Pois dada está já a sentença!

Frade — Pardeus! Essa seria ela!
Não vai em tal caravela minha senhora Florença.
Como? Por ser namorado e folgar com uma mulher se há um frade de
perder, com tanto salmo rezado?!…

Diabo — Ora estás bem aviado!

Frade — Mais estás bem corrigido!

Diabo — Devoto padre marido, haveis de ser cá pingado…

Descobriu o Frade a cabeça, tirando o capelo; e apareceu o casco, e diz o Frade:

Frade — Mantenha Deus esta c’oroa!

Diabo — ó padre Frei Capacete!
Cuidei que tínheis barrete…

Frade — Sabê que fui da pessoa!

A próxima é a alcoviteira Brísida Vaz. A cafetina também parece fazer uso de feitiçaria (também considerado pecado à época). Por ser completamente sem escrúpulos, além de traiçoeira e cheia de ardis, é condenada ao fogo do Inferno, para pagar por sua vida de devassidão. É usada como elo entre vários personagens, visto que muitos deles fizeram uso de seus serviços, mostrando ao leitor a moral destes. Chega carregando himens postiços, baús cheios de feitiços, armários com fundos falsos, objetos vindos furtos alheios, joias para seduzir, guarda-roupa para encobrir passagens, sua casa móvel para facilitar sua fuga, um estrado feito de cortiça, coxins e algumas moças. Todos esses símbolos são usados no meretrício, atividade que Brísida usa para enganar e explorar seus clientes e quem quer que tenha a infelicidade de cruzar seu caminho.

A seguir vem um judeu, talvez chamado Semifará (o texto não deixa claro se esse é o seu nome ou de alguém próximo), praticante de usura, assim como o onzeneiro. Vem trazendo consigo seu bode. O bode, no imaginário da época, era o símbolo do judaísmo, bem como de qualquer crença não cristã, por isso representa a rejeição à fé de Cristo. Todos parecem ter aversão ao judeu, até mesmo o próprio Diabo, chegando este a recusar levá-lo ao Inferno. É condenado por rejeitar o cristianismo. Vale ressaltar que, durante a regência de Dom Manuel, este empreendeu implacável perseguição aos judeus, com o intuito de expulsá-los do nascente país. Muitos deles venderam tudo o que tinham e partiram, portando grandes fortunas. Outros, no entanto, decidiram-se por converter-se, sendo assim chamados cristãos novos. Isso aplacou em parte a ira de Dom Manuel, porém, diversos grupos ainda perseguiram os cristãos novos por muito tempo.

Chegam, então, dois altos funcionários da Justiça, um corregedor e um procurador. Trazem os símbolos de sua profissão: diversos processos, a vara da Justiça e livros de leis. Aos olhos do povo, deveriam ser exemplos de homens retos e justos. Porém, foram condenados por usarem da lei como uma simples ferramenta para torcer os destinos dos homens, de acordo com quem pagasse mais. Foram julgados pelo Diabo como tão imorais quanto qualquer dos condenados anteriormente. Aqui o autor confronta a justiça humana, falha, com a divina, inefável e implacável.

Logo após, apresenta-se um homem que morreu enforcado. Traz consigo o instrumento de sua morte, o baraço, enrolado ao pescoço, representando não só sua justa condenação como os crimes que levaram à mesma. Apresenta-se às barcas, crendo que já encontrava-se perdoado, pois não poderia ser condenado duas vezes pelo mesmo crime. Porém, para seu desespero, não encontra eco em suas palavras, indo juntar-se ao diabo na barca lotada.

Por último, vem quatro cavaleiros que deram suas vidas em batalhas demandadas pela Igreja, nas Cruzadas. Os únicos que não portam símbolos de seus pecados, porém de suas virtudes. Portam a cruz de Cristo, pela qual deram suas vidas. Não foram encontrados quaisquer pecados em nenhum dos quatro cavaleiros anônimos. A eles foi concedido o perdão e foram encaminhados à leve Barca da Glória.

Todos os personagens são pesados e julgados pelos dois barqueiros, para decidir os destinos de cada um. Os únicos a serem julgados dignos da Barca da Glória são os quatro cavaleiros e Joane. O parvo, no entanto, permanece no cais, junto ao narrador. Isso parece demonstrar que Joane tinha pecado, apesar de não possuir consciência disso, precisando expiá-los antes de entrar na Glória. Joane também age como um auxiliar do Anjo para julgar as almas vindouras.

Todos os demais personagens são julgados indignos do Paraíso, sendo embarcados na barca demoníaca. A única exceção é o judeu que, por não querer desenvencilhar-se de seu bode, por quem nutria forte apreço, é obrigado a ser conduzido para o lado de fora da barca, arrastado por uma corda.

A peça termina sem explicar qual seria o derradeiro fim de Joane, permanecendo este no cais à espera de seu julgamento definitivo, numa sutil alusão à própria natureza humana, incerta de seu destino após a morte.

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

Judeu — Que vai cá? Hou marinheiro!

Diabo — Oh! que má hora vieste!…

Judeu — Cuj’é esta barca que preste?

Diabo — Esta barca é do barqueiro.

Judeu.— Passai-me por meu dinheiro.

Diabo — E o bode há cá de vir?

Judeu — Pois também o bode há-de vir.

Diabo — Que escusado passageiro!

Judeu — Sem bode, como irei lá?

Diabo — Nem eu nom passo cabrões.

Judeu — Eis aqui quatro tostões e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?

Diabo — Nem tu nom hás de vir cá.

Judeu — Porque nom irá o judeu onde vai Brízida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?

Diabo — E o fidalgo, quem lhe deu…

Judeu — O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel, castigai este sandeu!
Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

Parvo — Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim gafanhoto d’Almeirim chacinado em um seirão.

Diabo — Judeu, lá te passarão, porque vão mais despejados.

Parvo — E ele mijou nos finados n’ergueja de São Gião!
E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvador,
e mija na caravela!

Diabo — Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa, que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!

Personagens da obra

  • Diabo: conhecido como Belzebu, conduz uma barca em direção ao inferno.
  • Fidalgo: anda sempre com um pajé e carrega um rabo muito comprido além de uma cadeira de espaldas. Acaba pegando a barca rumo ao porto de Lúcifer.
  • Onzeneiro: o onzeneiro, uma espécie de agiota, faz companhia ao fidalgo na barca do inferno.
  • Parvo: encontra a paz na simplicidade e é encaminhado para a barca do paraíso.
  • Sapateiro: o sapateiro acredita que, por ter cumprido os rituais religiosos em terra, entraria na barca do paraíso. Porém, como enganou seus clientes, não ganhou o direito de subir na nau do anjo.
  • Frade: acompanhado de uma moça, o frade não tem direito a entrar no paraíso.
  • Brízida Vaz: por ser bruxa, prostituta e alcoviteira, não recebe autorização para entrar na barca da Glória.
  • Judeu: não pode embarcar no sentido do paraíso porque não é cristão.
  • Corregedor: ao contrário do que era suposto, o corregedor só defende seus próprios interesses sendo condenado imediatamente à barca do inferno.
  • Procurador: corrupto, pensa apenas em si e, como consequência, segue direto para a nau de Belzebu.
  • Cavaleiros: os Cavaleiros de Deus, mártires da Santa Igreja, que dedicaram a vida a causa cristã, são premiados com a paz eterna na barca do paraíso.

Estrutura e Estilo da Obra

Trata-se de uma peça teatral composta por diálogos e falas estruturados metricamente. Essa obra é escrita em versos heptassílabos, ou seja, com sete sílabas métricas.

O tom dos diálogos das personagens da peça sempre é coloquial, porém, por se tratar de uma peça portuguesa antiga, existem algumas variações linguísticas, expressões e vocabulários específicos de Portugal e da época,  com clara intenção de doutrinação e crítica a alguns pontos da sociedade portuguesa do período.

Cada um dos personagens se apresentam como um representante das mais variadas camadas sociais de Portugal na época, sendo muitas das profissões citadas de extrema importância.

Em relação à estrutura narrativa, como já dito, trata-se de uma peça teatral caracterizada como auto, que é uma designação genérica de textos teatrais com finalidade de divertir e, ao mesmo tempo, instruir. O intuito é fazer com que o público reflita sobre determinados assuntos, sempre abordando temas religiosos, o sagrado e o profano, sérios e cômicos, com sentido moralizador.

Essa obra se carateriza por não ter atos ou cenas. A história é despejada de uma só vez, sem pausas e interrupções, o que a faz ser considerada um texto em ato único.

Análise da Obra

O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, é uma peça teatral de extrema importância para a literatura em língua portuguesa, pois é um dos textos mais antigos a se tornarem famosos e replicados nesse idioma. Ainda, a obra é a mais conhecida do autor.

Gil Vicente também chamou a peça de O Auto da Moralidade, porque a intenção sempre foi criticar e levar à reflexão o comportamento de algumas pessoas que trabalhavam em determinados setores importantes daquela época, século XVI. Por isso, os personagens são alegóricos.

O escritor utiliza o Diabo, considerado o principal personagem, ou seja, o protagonista, como um vendedor ou barganhador de almas, com muita astúcia, malícia, acides e ironia. Esse personagem se transforma numa figura cheia de argumentos com a intenção de persuadir as pessoas a entrarem em sua embarcação.

Por meio dessa personagem, são expostos os piores segredos dos outros personagens, mostrando o lado ruim de cada um deles. Ele consegue traçar uma crítica certeira a diversas pessoas que atuam nas carreiras citadas, ou seja, crítica ao mal comportamento de alguns frades e padres que, mesmo sendo homens de Deus, acabavam cometendo diversos pecados.

Outro exemplo disso é o fidalgo, o qual faz alusão ao egoísmo e ganância das camadas mais ricas. Ou da mulher, que decidiu seguir uma vida de pecado e luxúria, entre outros.

Gil Vicente conseguiu criar em O Auto da Barca do Inferno uma peça cômica que ao mesmo tempo possui um grande significado reflexivo e forte teor crítico à sociedade portuguesa.

Por esses e outros motivos é que essa obra entra como um dos textos mais importantes para a literatura portuguesa e brasileira.

Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos malaventurados, disse o Arrais, tanto que chegou:

Diabo — Venhais embora, enforcado!
Que diz lá Garcia Moniz?

Enforcado — Eu te direi que ele diz: que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz, e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado.

Diabo — Entra cá, governarás até as portas do Inferno.

Enforcado — Nom é essa a nau que eu governo.

Diabo — Mando-te eu que aqui irás.

Enforcado — Oh! nom praza a Barrabás!
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás…
E disse que a Deus prouvera
que fora ele o enforcado;
e que fosse Deus louvado
que em bo’hora eu cá nascera;
e que o Senhor m’escolhera;
e por bem vi beleguins.
E com isto mil latins,
mui lindos, feitos de cera.
E, no passo derradeiro,
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro;
nem guardião do moesteiro
nom tinha tão santa gente
como Afonso Valente
que é agora carcereiro.

Diabo — Dava-te consolação isso, ou algum esforço?

Enforcado — Com o baraço no pescoço, mui mal presta a pregação…
E ele leva a devoção que há-de tornar a juntar…
Mas quem há-de estar no ar avorrece-lhe o sermão.

Diabo — Entra, entra no batel, que ao Inferno hás de ir!

Enforcado — O Moniz há-de mentir?
Disse-me que com São Miguel
jantaria pão e mel
tanto que fosse enforcado.
Ora, já passei meu fado,
e já feito é o burel.
Agora não sei que é isso:
não me falou em ribeira,
nem barqueiro, nem barqueira,
senão – logo ò Paraíso.
Isto muito em seu siso.
e era santo o meu baraço…
Eu não sei que aqui faço:
que é desta glória improviso?

Diabo — Falou-te no Purgatório?

Enforcado — Disse que era o Limoeiro, e ora por ele o salteiro e o pregão vitatório;
e que era mui notório que àqueles disciplinados eram horas dos finados e missas de
São Gregório.

Diabo — Quero-te desenganar: se o que disse tomaras, certo é que te salvaras.
Não o quiseste tomar…
— Alto! Todos a tirar, que está em seco o batel!
— Saí vós, Frei Babriel!
Ajudai ali a botar!

Até a próxima!

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