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Resumo de livro: Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu

Olá, leitor(a)!

Publicada em 1982, Morangos Mofados se tornou a obra de maior sucesso do escritor gaúcho Caio Fernando de Abreu, tendo, inclusive, recebido o prêmio de melhor livro do ano pela Isto É.  Trata-se de uma coletânea de contos dividida em três partes: O Mofo, Os Morangos e Morangos Mofados.

Sendo um grande admirador de Clarice Lispector, é possível perceber na escrita de Caio como a narrativa da autora o influenciou. Ele também recorre ao fluxo de consciência, com diálogos que intercalam entre primeira e terceira pessoa. A narrativa requer não só muita atenção do leitor, como um deixar-se fluir com a obra, pois é como se o escritor contasse uma história com partes que se desenvolvem apenas em seu íntimo.

A maioria de seus personagens não possui nome, sugerindo que eles são projeções do próprio autor. Conhecido por seu humor melancólico, Caio Fernando de Abreu aborda, por toda a obra, a tragédia crua, a hostilidade do mundo e a ansiedade constante. Isso tudo reforça a ideia de que os textos são confessionais.

Daquela última tarde de luz, o que me ficou na memória foi o visgo frio do suor nas palmas das mãos, os inúmeros pontos luminosos vibrantes dos automóveis, minhas frontes estalando com o barulho. Os automóveis eram faíscas coloridas metálicas voando sobre o cimento. Eu apertava minha tontura com as palmas molhadas das mãos, sem saber se ia, se voltava ou permanecia parado quieto entre aqueles pontos alucinados de luz girando em volta de mim. Devo ter começado a gritar, porque ele cerrou a boca com força, não me deixando escapar por sua garganta fechada.

Resumo da obra

Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu

Fonte: Reprodução

Parte I – O Mofo

Diálogo

Duas personagens desconhecidas conversam. O diálogo começa com a primeira afirmando que a segunda é sua companheira. Toda a conversa se desenrola com a segunda personagem inquirindo se havia um significado oculto por trás dessa afirmação. A primeira personagem nega durante toda a conversa. A discussão perdura e parece não ter fim, estendendo-se até mesmo depois do final do conto.

Os sobreviventes (Para ler ao som de Ângela Ro-Ro)

O segundo conto relata a despedida de um casal em crise. É escrito em fluxo de consciência, misturando os pensamentos dos personagens. Após mais uma tentativa de sexo frustrada, eles recordam toda sua vida a dois, tentando ver onde erraram. Ela chega à conclusão que foi por excesso. Excesso de cultura. Excesso de experiências, ditas edificantes, que gradualmente foram minando o desejo de um pelo outro.

O texto dá a entender que ambos levam uma vida confortável, morando em uma casa bem aparelhada e tendo realizado muitas viagens pelo mundo. O homem cogita deixar a parceira para ir morar no Sri Lanka, ela o apoia e vê como possível solução para os problemas deles, porém, ele parece se arrepender e fica o tempo todo tentando reverter o que disse.

A mulher diz que o desejo arrefeceu, mas não foi por falta de esforço. Eles tentaram de tudo. Todas as crenças, terapias e soluções propostas. Desde simpatias até relacionar-se com outras pessoas de ambos os sexos. Nada funcionou. Ela pede que ele coloque Ângela Ro-Ro para tocar e ambos partem para o banheiro para vomitar a vodka barata que tomaram, depois, coloca o homem para fora do apartamento, desejando que ele vá para o Sri Lanka e encontre algum sentido na viagem. Ela mergulha nos próprios sentimentos e a música continua.

O dia em que urano entrou em escorpião

O conto se passa em um apartamento, dividido por quatro amigos que se conheciam há muito tempo. Os quatro haviam desistido de sair devido à falta de dinheiro. Um deles, identificado como “rapaz de blusa vermelha”, entra na sala alardeando que Urano havia entrado em Escorpião.  Nenhum dos outros três esboça reação. Um deles alterna entre a janela e a coleção de discos, que escutam no volume baixo para não atrair a atenção do síndico.

A personagem descrita como “moça com o livro nas mãos” menciona diversas vezes sua leitura na conversa. Outro, foca sua atenção nos restos da galinha que sobrou do almoço. O rapaz de blusa vermelha cita diversas referências de astrologia para mostrar a importância do evento, mas, como seus amigos seguem não lhe dando atenção, o rapaz tenta se jogar da janela.

Seus amigos o acolhem e resolvem fazer algo para acalmá-lo. Deitam-no na cama e preparam um chá. Desta vez, colocam o disco que o rapaz de blusa vermelha gosta em volume alto. Enquanto os quatro dividem um cigarro de maconha, o síndico berra à porta, mandando abaixar o som. Nisso, a moça retruca, dizendo que não poderá abaixar porque é um dia especial: Urano tinha entrado na casa de Escorpião.

Pela passagem de uma grande dor (Ao som de Erick Satie)

Lui está sozinho em seu apartamento, experimentando os efeitos estuporantes que sucedem após usar droga. Ele recebe a ligação de uma velha amiga. Ela tenta a todo custo convidá-lo para sair ou, de alguma forma, juntar-se a ela. Lui desconversa e muda de assunto o tempo todo. Por fim, ela, frustrada, desliga e Lui experimenta o arrependimento por não ter aceitado o convite.

Além do ponto

Este conto é narrado em uma espécie de fluxo de consciência organizado. O protagonista havia sido chamado por outro homem para ir à sua casa. Na narrativa, o protagonista está andando na chuva, portando uma garrafa de conhaque e um maço de cigarros. Segundo ele, não chamou um táxi porque, se o tivesse feito, não teria como comprar o maço ou a garrafa. Também não levava um guarda-chuva, pois tinha o hábito de perder.

Enquanto andava, seus pensamentos se separavam em duas direções. Em uma delas, imaginava como seria sua chegada, recebido com jazz, uma mesa posta e um ambiente agradável. Na outra, fazia uma autoimagem que ele teimava em esconder. Não queria demonstrar sua falta de sono e de dinheiro ou seu descuido com a própria saúde.

Durante a caminhada, cai e quebra a garrafa, encharcando-se de conhaque e se sujando de lama. Chega na casa do outro homem, bate por diversas vezes na porta e não é atendido. Tenta chamar pelo dono da casa, mas se esquece do nome.

Os companheiros (uma história embaçada)

A história inicia em suspenso e o próprio narrador esclarece que ir direto aos fatos faria com eles perdessem o sentido. As coisas acontecem em uma casa rodeada por morcegos, apesar de ninguém saber porque eles a rodeiam. Somos apresentados aos personagens: De Camisa Xadrez, Moreninha Brejeira, Médica Curandeira, Jornalista Cartomante e Ator Bufão.

O texto passa boa parte do tempo narrando os encontros destes personagens, cada vez mais distantes e desinteressantes uns para os outros. Junta-se a eles o Marinheiro Frustrado. A narrativa vai listando alguns dos pequenos orgulhos pessoais de cada personagem. Essas descrições transcorrem até o momento em que, em pleno verão, um vento frio sopra e todos parecem se preparar para algum tipo de ação que está por vir.

Terça-feira gorda

A história se inicia em uma terça-feira de Carnaval, em que o personagem principal encontra outro homem durante as comemorações. Ele tem a impressão de conhecê-lo de algum lugar. Envolvem-se, beijam-se e tomam algum entorpecente sintético.

Em meio à hostilidade das outras pessoas, resolvem sair de onde estão e ir à praia. Lá, retomam a ação. Porém, durante o sexo, são surpreendidos por uma turba enfurecida. Talvez formada pelas mesmas pessoas de antes. O protagonista consegue fugir, mas seu par não tem a mesma sorte.

Eu, tu, ele

A história começa em uma espécie de despedida, narrando o encontro de uma segunda e terceira pessoa com outro homem, que parece sentir inveja ou ciúmes dessas duas pessoas. Conforme o conto avança, percebemos que, na verdade, elas são duas facetas dele mesmo.

Durante a despedida, notamos que a primeira pessoa é a personalidade que ele mantém para si. Já a segunda, a que usa dentro de sua casa, ele mantém com as pessoas com as quais consegue ser mais honesto. E a terceira, mais dura, é empregada na rua. Ele é um ator e sua partida é para disputar um papel em uma peça.

Luz e sombra

No último conto da primeira parte, o narrador parece estar em uma espécie de prisão. Não conseguimos decifrar se ele está narrando acontecimentos reais ou se são apenas delírios. Ele escreve uma espécie de súplica em forma de carta para alguém que não identificamos. Talvez seja um apelo do inconsciente para a consciência o libertar daquela existência sem sentido.

Para ele, são fornecidos cigarros, pão e água diariamente. Por vezes, vomita sobre os suprimentos e não os consome. Existem três cenários: a sala-prisão, onde está no momento; uma escadaria, onde ele se sentava quando era adolescente; e um quarto, onde dormia quando ainda é bebê. O conto termina com a mesma súplica por libertação, dessa vez misturada com um pouco de esperança.

Queria pensar que é esse o sentido, que será esse o depois. Não sei se posso. Há dias, como hoje, em que por mais que minta sequer con – Dá-me mais vinho, porque a vida é nada – sigo ver você, seus membros longos que o vento rouba dos panos. Só Fernando Pessoa: ‘Cancioneiro’ escuto os dentes rangendo e os ruídos internos do meu próprio corpo. Tudo isso me cega. Leva-me daqui, eu peço. E cruzo as duas mãos sobre o peito, como se sentisse frio ou afastasse demônios. Aperto o rosto contra o vidro. Duas pombas, cada uma delas bica um de meus olhos. Tal – Quem conhece Deus – vez um dia consigam quebrar o vidro. Sem querer, lembro de uma antiga sente as coisas internas história de fadas: duas pombas furavam os olhos de duas irmãs más, você e é amigo dos morangos lembra? Havia fadas, naquela história. Não há ninguém dançando sobre que nunca morrem. Os telhados. Nunca houve. Para não ver o cinza que se transforma em Henrique do Vaile:

‘Os morangos são eternos’ verde, olho para além deles.

Parte II – Os morangos

Transformações (Uma fábula)

A fábula parece toda uma alegoria para a depressão. O personagem está lá, mas não está. Em seu lugar, encontra-se a Grande Falta, com seus olhos verdes. Ele mantém uma casca, mas sabe que as pessoas conseguem ver a Falta.

Existem momentos em que a esperança retorna, mesmo assim, ele sabe que a Falta vai perdurar por toda a sua vida. O narrador tenta dar vários nomes para a Grande Falta, na tentativa de controlá-la. Não consegue, mas aprende que pode estabelecer uma convivência complexa com ela.

Sargento Garcia

Este conto começa em uma sala de quartel, onde está o protagonista Hermes. Ele e outros homens estão nus para realizar um exame médico. No entanto, quem realiza o exame não é um médico, mas sim o sargento Garcia. Sua figura é aterrorizante para Hermes, que possui apenas 17 anos. Após uma sessão de abuso psicológico, o garoto é dispensado por conta de um atestado médico (que foi forjado), além do fato de sustentar a família (também mentira) e estudar para entrar em uma faculdade de Filosofia (essa, sim, uma verdade).

Após sair do quartel e antes de tomar o bonde para ir para casa, é alcançado pelo sargento. Este oferece carona e Hermes aceita. No caminho, começam a conversar e Garcia fala que Hermes difere dos demais garotos. Hermes não entende e o sargento começa a acariciá-lo, o garoto corresponde e Garcia o convida para ir a outro lugar.

Tendo aceitado o convite, ao chegarem, Hermes conhece Isadora, gerente do lugar — um hotel da pior qualidade, usado habitualmente pelo sargento. Os dois se dirigem a um quarto cheirando a mofo, onde fazem sexo apressadamente. Depois, vestem-se e se separam. Hermes toma o primeiro bonde que vê e se dá conta, no caminho, de que não sentiu dor ou desconforto no encontro, pelo contrário, está mais seguro de si.

Fotografias

O texto é dividido em duas partes, 18 x 24: Gladys e 3 x 4: Liége. Cada parte é o relato e descrição de duas mulheres muito diferentes entre si. Gladys tem 30 anos e é uma mulher experiente, que frequenta, quase diariamente, coquetéis em busca de homens para satisfazê-la. Liége, mais jovem e inexperiente, só havia tido uma experiência sexual, traumática. Em algum ponto de ambos os relatos, as duas se consultam com uma cigana.

A mulher revela, para cada uma, em momentos diferentes, que em suas vidas existem dois amores. Gladys se lembra de um rapaz inexperiente que tivera e deixara partir, reacendendo nela o desejo por reencontrá-lo. Liége, por sua vez, recorda-se de sua experiência traumática e espera, pacientemente, por um príncipe encantado.

Pêra, uva ou maçã?

Este conto é narrado por um analista, que conta a sessão que teve com uma paciente. Esta, assim que entra, diz que acreditar que o psicólogo estava com as meias trocadas. Fato que ela afirma não ser importante, mas que não sai dos pensamentos dele por nenhum minuto.

Ela conta que, quando estava vindo para a sessão, resolve comprar ameixas maduras e comê-las durante o trajeto. Na esquina do consultório, esbarra em um caixão saindo de um velório e derruba as ameixas. As recolhe, uma a uma, e então o cortejo pôde prosseguir. Ela tenta despertar no analista a gravidade do acontecido, o que não consegue.

A moça sai e se despede, sem que o analista dê a sessão por encerrada. Deposita uma ameixa madura na escrivaninha e deseja um feliz ano novo a ele, em pleno setembro. Ele corre para encontrá-la, mas ela já estava fora do prédio. Percebendo que sua condição se deteriorara, decidiu ligar para os pais, no intuito de interná-la novamente, mas isso teria de esperar, pois o outro cliente logo chegaria.

Natureza viva

O conto é um ensaio sobre a ansiedade. Ele relata, em detalhes, como os seres humanos se distanciam por não saberem o que se passa no íntimo uns dos outros. Ainda diz que as pessoas seriam muito mais próximas se não tivessem nenhuma emoção, pois elas são a raiz de toda a ansiedade e escondê-las nos distancia. O ensaio termina dando a certeza de que, um dia, essa ansiedade passará, mas esse dia é incerto.

Caixinha de música

A história começa com a protagonista acordando de um sonho e vendo seu companheiro pondo uma caixinha de música para tocar. Ela pergunta o que há de errado e ele, após certa insistência, relata haver tido um sonho, dividido em três atos.

No primeiro ato, ele viu uma árvore muito bela, de flores roxas e amarelas. Se aproximou e entrou por um vão no tronco. Dentro da árvore. Tudo era escuro, espinhoso e podre. Quando saiu, viu novamente a beleza. Entendeu isso como uma referência às angústias internas que liberam belezas.

No segundo ato, retorna no dia seguinte e vê que eram duas árvores. Uma primavera e um salgueiro. Lado a lado. O homem diz à mulher que talvez fosse um caso de amor entre as árvores. Nesse momento, ele avança sobre a mulher e os dois quase começam a fazer sexo, mas ele para e inicia o terceiro ato.

Na última parte, ele vê o salgueiro morto. Foi a primavera que o matou e sugou toda a sua vida para ser bela e florida. A mulher, então pergunta se ele se sentia sugado. Não teve resposta. O homem avançou mais uma vez sobre ela, dessa vez, para sufocá-la até a morte.

O dia que Júpiter encontrou Saturno (nova história colorida)

A narrativa começa do ponto de vista de uma moça, que resolveu ir a uma festa em um sábado à noite, em São Paulo. Lá, encontra um rapaz e passa a olhar tímida para ele. Senta-se na janela para admirar o céu e vê uma conjunção entre os planetas Júpiter e Saturno.

O rapaz se senta ao seu lado para também contemplar e pergunta se ela gosta de olhar as estrelas. Ela aquiesce, ambos passam a travar um diálogo, que se inicia com astrologia. Entre vários assuntos e silêncios contemplativos, o leitor é levado por várias linhas de pensamento.

Os dois parecem estar loucos, entorpecidos ou mesmo mortos que se encontram em uma pós-vida. A narrativa se encerra do ponto de vista do rapaz, que se mostra tão tímido quanto a moça. Ele se despede dela e vai embora.

Aqueles dois

Conta a história de dois colegas de trabalho, Raul e Saul. Ambos passaram para o mesmo concurso público, na mesma repartição, tinham idades próximas e nomes parecidos. Gostavam de cinema e tinham frustrações semelhantes. Raul terminou um casamento de três anos e não teve nenhum filho. Saul terminou um noivado muito longo e não concluiu a faculdade de arquitetura.

Apesar de se distanciarem no início, o fato de se sentirem deslocados do resto da repartição (que chamavam “deserto de almas”) os aproximou. O texto continua descrevendo os colegas e suas vidas. Nenhum deles era da cidade onde trabalhavam, além disso, não tinham parentes morando perto. Raul tinha paixão por música e suas poucas posses realçavam esse interesse. Da mesma forma se comportava Saul com o desenho.

Eles são descritos pelo narrador como bonitos. Belezas opostas, porém, complementares. Todas as mulheres da repartição parecem concordar com a descrição. Em seguida, nos é mostrado como eles se aproximaram. Saul chegou atrasado, porque ficou assistindo a um filme até tarde. Raul pergunta a história do filme e ambos começam a conversar sobre o assunto. O diálogo fica mais constante e os temas mais pessoais.

Eles eram sempre convidados para reuniões sociais. Compareciam, mas ficavam conversando apenas entre si sobre os problemas que estavam enfrentando com as mulheres e de como a amizade de ambos parecia mais simples. Percebiam, toda segunda-feira, que sentiam falta um do outro. Sem, contudo, falarem sobre isso. Um dia, Saul faltou, e Raul parecia perdido. Tudo isso gerava burburinhos maldosos na repartição.

Eles, agora, estavam mais próximos. Trocaram telefones e passaram a frequentar a casa um do outro nos finais de semana. Almoçavam ou jantavam juntos. Bebiam, fumavam, assistiam a filmes, cantavam, discutiam arte, jogavam. Os comentários e piadas maldosas aumentaram, sobretudo no dia em que chegaram juntos na repartição, com os cabelos molhados, pois Saul havia dormido no sofá de Raul devido à chuva.

A mãe de Raul faleceu e este tirou a semana de folga. Desta vez, Saul quem se sentiu perdido. Quando Raul voltou, ambos passaram a noite juntos. Ficaram abraçados por bastante tempo, o que confundiu os sentimentos dos dois. Saul se despediu e, quando chegou em casa, chorou por conta de sua solidão.

No Natal e Ano-Novo, ambos trocaram presentes e passaram a virada juntos. Dormiram nus, sem se importar, e trocando elogios sobre a beleza um do outro. Chegou janeiro e eles planejavam tirar férias juntos. O chefe os chamou e os mandou embora. A alegação foi de que o relacionamento de ambos era considerado imoral. Juntaram suas coisas e partiram no mesmo táxi, com os olhares de todos sobre eles.

Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.

Parte III – Morangos mofados

Prelúdio

Uma narrativa curta, também em fluxo de consciência, em que  o protagonista se sente angustiado com alguma coisa. O passar do tempo apenas aumenta a sensação, a falta, o gosto de morango mofado na boca.

Allegro Agitato

O personagem se consulta com o médico. Em seu consultório impecável, o bom doutor atesta a perfeita saúde do rapaz, mas este se queixa de uma sensação estranha: o estranho gosto na boca. O médico suspeita de ansiedade e lhe receita um tranquilizante.

Adagio Sostenuto

O remédio faz efeito, bem até demais, e a letargia toma conta dele. Vê-se perdido em um fim de semana, tomado pelo tédio. Lembra-se de sua ex. e tenta se masturbar, sem sucesso. Vomita por conta do remédio. Sabe ser bem-sucedido na carreira, mas a sensação de estar comendo morangos mofados persiste.

Andante Ostinato

Seus sonhos se tornam febris e alucinados. Acorda com a mesma sensação na boca e a realidade começa a se misturar com as lembranças e os sonhos. A casa começa a ficar descuidada, a sensação na boca persiste e ele cogita o suicídio.

Minueto e Rondó

Senta-se no parapeito da janela, olhando para a calçada logo abaixo. Pensa já ter morrido, vítima de uma hecatombe nuclear. Afasta a ideia e questiona a própria veracidade do mundo. Sente-se melhor, esperançoso. O gosto ruim na boca havia passado. Talvez o remédio estivesse fazendo efeito. Desiste da ideia de suicídio e passa a fazer planos: resolve plantar morangos.

Desligou a televisão, saiu para o terraço de plantas empoeiradas, devia cuidar melhor delas, não fosse essa presença viva dentro de mim corroendo carcomendo a célula pirada na alma fermentando o gosto nojento na língua. O cheiro daquele único jasmim espalhado sobre os sete viadutos da avenida mais central. Bastava um leve impulso, debruçou-se no parapeito, entrevado, morto da cintura para baixo, da cintura para cima, da cintura para fora, da cintura para dentro – que diferença faz? Oficializar o já acontecido: perdi um pedaço, tem tempo. E nem morri.

Notas sobre o autor

Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu em Santiago, um município do Rio Grande do Sul conhecido como “terra dos poetas”, em 12 de setembro de 1948. O autor conhecido por uma escrita fragmentada, iniciou Letras e Artes Cênicas na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), mas não concluiu.

No período da ditadura, o autor exilou-se na Europa após ser perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Antes disso, a célebre poeta Hilda Hilst o hospedou por um tempo em seu sítio, em Campinas.

O autor, que durante muitos anos trabalhou como jornalista, publicou seu primeiro romance no ano de 1970, Limite Branco. A obra já antecipava o longo caminho do autor por temas como a morte, a angústia e solidão.

Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara, mas substituições oportunas, como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um tempo novo traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas dilatadas. Estava exatamente como era, sem aditivos.

Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.

Você conhecia a obra de Caio Fernando de Abreu? Deixe nos comentários qual dos contos mais chamou sua atenção!

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Boa leitura e até a próxima!

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